segunda-feira, 31 de março de 2014

Engraxando Merda!

Nas feiras de todas as cidades é comum se encontrar crianças trabalhando como vendedores ou prestando algum tipo de serviço, não era e nem é diferente na feira de Itabaiana.
Final de feira no meio da semana  (uma quarta-feira).Década de 70 do século XX.
Foto conseguida no grupo Facebook Itabaiana Grande
A grande maioria dos serviços era de comércio de pequenos produtos, tais como: picolé, arroz doce, gaiolas, pássaros, sacolas, etc. Os tipos de serviços efetuados por crianças (às vezes por adultos), os mais comuns, eram: engraxate, amolador de facas (alguns amolavam tesouras), carregos (se pronunciava carrêgo!), etc. Muitos dos serviços prestados por crianças (às vezes por adultos) já não são possíveis de se praticar.


Entre as centenas de crianças, que trabalharam (e ainda trabalham) na feira de Itabaiana, eu trabalhei realizando venda de alguns produtos (citados acima) e em busca de alguns trocados. Dos serviços que realizei o mais interessante, que me permitiu presenciar algumas situações inusitadas, foi a de engraxate.

Quando ainda criança, eu não via muitos engraxates pela cidade. Engraxar os sapatos nesta época era uma coisa de classe média e a cadeira com a caixa para se engraxar os sapatos era uma única peça que mais parecia um trono! A Pessoa ficava sentada bem no alto, com os sapatos colocados sobre dois apoiadores feitos para que o mesmo ficasse bem encaixado e facilitasse a limpeza com o polimento. O engraxate ficava sentado em um pequeno banco, onde a altura do mesmo em relação aos sapatos do cliente, facilitasse o trabalho.

Mas no decorrer da década de 70, do século passado (século XX), apareceram as caixas de engraxar portáteis, que foram muito utilizadas por garotos e adolescentes da época. A caixa de engraxar era pequena, com um pequeno apoiador (se colocava um pé de cada vez), tinha de se levar um tamborete ou uma cadeira (onde o cliente se sentava), a caixa e a cadeira era separados no qual facilitava o transporte. Essa portabilidade permitia que pudessem sair à procura dos clientes em locais de maior movimento. O local mais procurado eram as feiras e os diversos bares.

Nesta época eu era um dos adolescentes que procurava ganhar alguns trocados nesta profissão (normalmente acompanhando de outro adolescente, o meu vizinho) e o local escolhido sempre foi na feira de Itabaiana. Sempre procurávamos ficar em algum local de passagem dos feirantes (vendedores e clientes) e no meu caso era sempre na frente à antiga Agência do Banese, ficava de frente ao Largo Santo Antônio, ou em frente das lojas de venderem sapatos (as duas lojas ficavam lado a lado ao lado direito do Hotel e bem de frente ao mercado de farinha e carne verde).

Rua que fica de frente ao largo Santo antônio. Local que
sempre escolhia para execução de serviços de engraxate. 
Sempre eram em dias de feira e pela manhã.
Em um desses dias de sábado (eu tinha apenas doze anos de idade), eu o meu colega de infância (nome Cesar) estávamos à espera de clientes, na frente da loja de Seu Pimentel, apareceu um senhor de pele bronze escura, vestido de terno (um fazendeiro de Coronel João Sá na Bahia), voz calma, compassada, dirigiu-se ao César, mostrou os sapatos e no qual ele disse que gostaria de limpar. Os sapatos estavam todo coberto de farinha. Eu, sentado na coluna da porta ao lado, sentir um mau cheiro de merda e fui logo soltado o verbo: rapaz, esse aí pisou em merda, tá fedendo pra burro! O senhor (que não escutou minhas indagações) alegou que tinha pisado nas farinhas, que elas tinham grudado no sapato e gostaria de limpar. O cliente se sentou, puxou assunto com feirantes que iam passando e deixou o César a vontade fazendo o serviço (limpeza) de engraxar os sapatos. Eu, tirando gozação, fui logo falando: quero é ver você conseguir limpar essa merda com farinha? A merda, misturada com farinha, estava tão ressecada e grudada no sapato que nem passando uma chave de fenda se conseguiu fazer com que largasse do couro! Enquanto a cliente conversava, o César ficou por instante tentando retirar a merda com farinha e eu sempre de gozação. O César sempre pedindo para que eu ficasse calado para não espantar o cliente!

Durante a realização do serviço, o cliente foi abordado por umas das pedintes que sempre costumava a aparecer durante as feiras. Foi que o senhor olhou para a mesma e questionou: a senhora não é a minha vizinha lá em Coronel João Sá? (foi assim que descobrimos que o cliente era baiano). A senhora respondeu meio que desconfiada: eu sou aqui de Itabaiana mesmo. O cliente insistiu: não! Eu conheça a senhora, sou seu vizinho e se a senhora quiser me vender uma daquelas vacas leiterias? Eu compraria uma lá para minha fazenda. A mulher deu as costas e saiu sem falar mais nada! O cliente ainda indagou com uns dos que estava conversando: ela é minha vizinha, é aposentada, tem um sítio com algumas cabeças de vacas leiteiras e vem aqui, pra Itabaiana, pedir esmolas!

Depois de algumas tentativas frustradas de retirar a farinha, misturada com merda, que estava muito bem grudada no couro do sapato, o César tomou uma decisão pra lá de estranha. Ele pegou a tinta preta, pintou o todo o sapato por várias vezes e escovou várias vezes até que a área coberta, pela sujeita inoportuna, ficasse preta igualmente ao sapato. Depois engraxou duas vezes e por duas vezes fazendo a devida escovação. Depois lustrou com a flanela e por incrível que pareça o sapato ficou totalmente preto e brilhando!

Encerrado o trabalho, que deveria ser retirada do que supostamente deveria ser só farinha, o mesmo foi apresentado ao cliente que pagou, agradeceu e se retirou satisfeito! E assim testemunhei como engraxar merda!

Antônio Carlos Vieira
Licenciatura Plena - Geografia (UFS)

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