segunda-feira, 27 de junho de 2016

O CONTO DO RELÓGIO DA IGREJA

Vladimir Souza Carvalho /// Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras. O Correio de Sergipe do dia 17 de maio de 2014 publicou:

Foto de Antônio Francisco de Jesus
Rifa não faltava. Rifava-se tudo, até dinheiro. Uma vez, papai se viu compelido a comprar um bilhete. Ganhou. Uma camisa, de manga comprida, um vermelho leve com tiras pretas, mais ou menos como se fosse de festejos juninos. Fiquei com a camisa, que beleza, uma a mais que vesti pra chuchu, nos dias de sábado e domingo, à noite, para ir a praça ou ao cinema. Rifa era o que aparecia, à noite, no bar Brasília, o rifador com o papel, colhendo assinaturas e recebendo o pagamento, rifas sérias, que corriam assim que todos os números fossem vendidos, o resultado sendo comunicado aos que bilhete adquiriam.

O maior rifador daqueles tempos foi Juvino Preto, ou Aruvim, como era chamado, morador de casa vizinha a de Zé Gordinho, na rua da Vitória. De charuto na boca, camisas de manga comprida, organizava o que se chamava, à época, de balaio, e saia numa carroça, para todo mundo vê-lo, adquirindo, assim, o bilhete. Tinha a confiança de
todos, antecipando no tempo, com seus balaios, a tradicional cesta de Natal. As rifas de Jovino Preto eram permanentes, não se registrando nenhuma desconfiança da população interessada. 

A nota triste surgiu quando Jovino Preto adoeceu e precisou ser ele, agora, colocado em cima da carroça, a cor preta desbotada, a boca sem o charuto, para receber donativos, a fim de sobreviver. Triste final. Meu pai, que anotava a data em que todos morriam, deve, por certo, ter inscrito nas suas cadernetas, a do óbito de Jovino Preto. 

Não faz vinte anos, no Beco dos Lírios, numa manhã de sábado, me ofereceram um bilhete. O objeto rifado: uma vaca. E onde eu vou colocar a vaca, perguntei. O vendedor respondeu: eu compro. Ora, que pergunta mais besta a minha, deixando a resposta sem réplica. 

Mas, há um objeto que foi sempre rifado e até agora está lá, porque o ganhador, se teve, nunca o retirou do local. O objeto: o relógio da Igreja. Sim, corria, de quando em quando, por algum esperto, uma rifa do relógio da Igreja. Relógio da Igreja? Exatamente, aquele ali, no alto da torre, tão enorme que só na torre se acomodava. E, evidentemente, sempre havia quem, distraídamente, comprasse um bilhete. A dúvida era como o vencedor receberia o relógio. Ora, subindo na torre e pegá-lo. Era o conto do vigário, digo, conserto, retomo a narrativa correta, era o autêntico conto do relógio da Igreja, que, felizmente ou infelizmente, nunca foi inserido em livro algum a respeito dos múltiplos modos de estelionato coletivo. 

Não sei se os vigários da época sabiam que o relógio da Igreja estava sendo rifado, nem nunca ouvi falar do ganhador que tenha tentado tirá-lo da torre, nem, ao menos, se alguma rifa, com o objeto em foco, foi, de fato, concluída. O certo é que o relógio ainda está lá e o meu tempo de menino já ficou para trás há muitas décadas. O mais fica por conta da esperteza de uns poucos, na tentativa, um tanto moleca, embora tipicamente itabaianista, de, com a rifa do relógio da Igreja, inventar alguma coisa que quebrasse a monotonia daqueles velhos tempos.

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